Alguma vez foi descalço para a escola?

Alguma vez teve de caminhar sentindo a dureza do chão que pisava? Se nunca passou por essa experiência, proponho-lhe a leitura de “Descalço ia para a escola”, uma história de privação e muito frio nos pés.

#14 Descalço ia para a escola

Era Janeiro e o atalho pelos campos levava-me para a escola primária e a 3ª classe. O frio era feito de agulhas a varar-me o vestuário singelo que me cobria o corpo franzino. 

Os charcos nos campos, empoçados com água da chuva, vidravam-se com gelo, tanto era o frio a descer da serra, fragmentos de espelho pontilhavam o chão onde eu podia vislumbrar o semblante retraído.

Era Janeiro. E descalço eu ia para a escola.

No seu poema, Luís de Camões diz-nos: “Descalça vai para a fonte/Leonor pela verdura;/Vai formosa, e não segura./Leva na cabeça o pote,/O testo nas mãos de prata,/Cinta de fina escarlata,/Sainho de chamelote;/Traz a vasquinha de cote,/Mais branca que a neve pura./Vai formosa e não segura.”

Eu não era Leonor mas caminhava descalço como ela, não para fonte mas para a escola das primeiras letras, não pelo verde dos campos mas pelo branco dos nevões.

Não ia formoso nem seguro, ia encolhido com o frio que me massacrava os pés nus, a calcorrear distâncias e chão gelado pelos caminhos fora da aldeia.

Na cabeça não levava o pote, levava a sacola dos livros a cobrir-me as orelhas dos pingos a chuviscar. As mãos não eram de prata como as de Leonor, eram ásperas, calosas, marcadas pela vermelhidão e inchaço das frieiras.

Os campos cobriam-se não de enlevada verdura mas de infinita brancura com a geada do amanhecer. Eu caminhava descalço, não ia formoso nem seguro, ia magoado pelo frio e por saber que naqueles enregelados dias de Janeiro não tinha sequer uns miseráveis socos para enfiar nos pés.

Mas caminhava, determinado, ao contrário de certos moços da minha idade que abandonavam a escola pelo frio e falta de propósito. Cresciam adultos, sem rumo, ignorantes, incapazes de escrever o próprio nome. Como o meu pai. Rude e analfabeto. 

Eu era uma criança sem calor nem conforto, mas intuía que seria pela escola e o que nela aprendesse que encontraria os sapatos que me haviam de aquecer e proteger os pés.

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